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montesclaros.com - Ano 25 - sexta-feira, 26 de abril de 2024
 

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Mensagem: A RÉPLICA DO MERCADO MUNICIPAL

Ruth Tupinambá Graça

Foi em 1996 que fiquei encantada com o entusiasmo de Wanderlino Arruda, secretário municipal naquela época, falando-me do seu Programa de Trabalho e, principalmente, sobre a construção de um teatro, réplica do antigo Mercado Municipal, no mesmo local.
Graças a Deus ainda existem homens como Wanderlino, que valorizam o passado e procuram preservar os monumentos que traduzem e conservam a memória da nossa cidade. Mas, infelizmente, Wanderlino pregou no “deserto”...
E a réplica do Mercado Municipal caiu no esquecimento.
Quem não se lembra do nosso antigo Mercado Municipal que durante muitos anos dominou a Praça Dr. Carlos?
Para alguns era considerado grotesco e mal construído, mas para outros ele era o máximo. Considerando as dificuldades, ele merecia um voto de louvor.
Em 1897, então Presidente da Câmara o Dr. Honorato Alves, comerciantes daquela Praça enviaram-lhe um ofício pedindo a construção de um mercado moderno, que satisfizesse as necessidades da nossa comunidade. Atendido o pedido, a planta foi feita por um engenheiro da época, assistido por João Fróis, um “prático” curioso, apressado e com muita vontade de servir.
Este achou por bem não fazer alicerce de pedra (como projetara o engenheiro) resolvendo -por sua conta - fazer o travamento de madeira, suprimindo algumas exigências da planta (para andar mais depressa).
Como em todo grande acontecimento, sempre existem os prós e os contras. Neste, do Mercado Municipal, aconteceu o mesmo.
Na cidade já existiam dois partidos: o “de Baixo” e o “de Cima”. Foi só iniciar a construção, começou uma guerrinha. Os “de Cima” aplaudindo a ideia e os “de Baixo” fazendo grande pressão, contra.
A construção foi rápida e uma certa noite, toda a cidade acordou com um forte estrondo. A esperteza de João Fróis deu zebra. O Mercado, que já estava de cumeeira inaugurada (com cerveja e tudo mais) havia desabado. Felizmente sem vítimas.
Com isto, os “de Baixo” ficaram, obviamente, contentes e os “de Cima” se lastimaram.
Uma tragédia, mas não desanimaram.
Novas lutas, novos fracassos, mas a vontade maior dominavam aquele “formigueiro humano”.
O Cel. Antonio dos Anjos, grande batalhador e sempre ligado na solução dos problemas da cidade - embora desapontado - não perdeu a cabeça e, liderando uma turma de amigos, foi de casa em casa, com uma subscrição para recomeçar a obra.
Cassimiro Mendonça (meu avô) encabeçou a lista com 200#000 (duzentos mil réis).Um escândalo!
A cidade toda comentou a sua doação chamando-o de estroina e todas as demais derivações da palavra gastador.
Assim, milagrosamente, as doações se multiplicaram. Em pouco tempo o Cel. Antonio dos Anjos (pai do Cyro dos Anjos) conseguiu 2.360#000 (dois mil, trezentos e sessenta mil contos de réis).
Desta vez seguiu-se as instruções do engenheiro e, aos dois de setembro de 1899, sendo Presidente da Câmara Simeão Ribeiro dos Santos, o Mercado foi solenemente inaugurado.
A partir desta data tornou-se o assunto da cidade.
Um enorme casarão branco (tipo chalé) com quase 30 metros de frente e 32 de fundo, com sete cômodos de cada lado para as vendas, onde se instalaram os comerciantes.
Ao centro, uma enorme área vazia onde os tropeiros e bruaqueiros espalhavam suas bruacas. Mais tarde ampliaram-no com uma torre de 17 palmos, onde colocaram um Regulador (marcador oficial da hora certa da cidade) Público, inaugurado em 1906 - com muita festa - já no governo do Dr. Honorato Alves.
Este mercado foi por muitos anos o ponto vital da nossa cidade, onde a preferência para os “bate papos”, assuntos políticos, religiosos e sociais, negócios, decisões familiares, até batizados, casamentos e desquites, tudo era ali discutido e não existia lugar melhor para as “fofocas”.
Aos sábados, tornou-se o hábito de todos: era o dia da feira. Todos os moradores da nossa cidade antiga dirigiam-se ao Mercado para suas compras. Era feira de verdade onde se encontrava de tudo: arroz com casca ou socado no pilão, açúcar mascavo, rapadura cerenta gostosa, doce de cidra, laranja em formas embrulhadas em folhas de bananeiras, batidas de Santo Antonio, café em grão (torrado em casa) tão saboroso.
Os bruaqueiros com enorme variedade de mercadorias iam chegando, aos poucos, desde a madrugada e enchendo o Mercado: farinha de milho bem torradinha, queijos, requeijões, farinha de mandioca do Morro Alto, beiju de goma tão clarinhos. As carnes de porco, carne de sol de “dois pelos”, em grandes montes.
Colocados em jiraus de madeira, muita linguiça feita em casa, com muito tempero, cheirosa... Muita fruta: banana roxa, mulata, caturra, cachos enormes; lima da Pérsia (que hoje não existe mais), coco azedinho, muita manga rosa, espada, sapatinha, umbu, tão bonitas!
Melancias aos montões, verdinhas e lustrosas, cabeça de negro, panãs, araticuns, gravatás, pitombas, tamarindos, jatobás, e o nosso célebre pequi. Muito caldo de cana, tabuleiros enormes de bolo de arroz, doce de mocotó de boi, daquele escurinho, gostoso, sem sofisticação.
Biscoito caseiro, cascorão, míngau de milho verde, pamonha, goiabada embrulhada em palhas de milho, uma delícia.
Os bruaqueiros ofereciam suas mercadorias naquela simplicidade do caipira: “Compra minha dona, é feijão novo catado, cuzinha ligirim, com uma só água, arroz do bão mesmo, cuido agora e socado no pilão, sem quebrá, os ovos fresquinhos, cuido de manhãzinha ovo de galo bão mesmo”.
As mocinhas da roça que vinham vender suas verduras cultivadas na beira dos regos (abóboras, quiabo, chuchu, maxixe, tomatinhos para molho, salsa, cebolinha; tão verdinhas) eram bem bonitinhas de vestido novo de chita, um “rouge” muito vermelho, boquinha de coração, brincos e colares de contas coloridas, mas quando riam mostravam sempre falhas de dentes na frente. Era uma pena. De boca fechada até que passavam. Mas mesmo assim com toda “jecura”, faziam conquistas com moços da cidade que lhes davam uma “colher de chá”.
No fundo do Mercado, do lado de fora ficavam os animais e também as bruacas espalhadas pelo chão.
Muito fumo de rolo e cachaça em “banquinhos” atrás do Mercado. Era ali o paraíso dos roceiros. Um cheiro forte de pinga e fumo espalhava-se por todo o Mercado. No final do dia havia sempre bruaqueiros “escornados” no chão, dormindo com chapéu no rosto, protegendo-se do sol. Na maioria das vezes nem este cuidado tinham e com a boca aberta lambuzada, roncavam alto, enquanto os mosquitos passeavam saboreando, entrando e saindo, escondendo-se nos bigodes molhados de pinga e saliva.
Os animais eram tão mansos que não se espantavam nem davam coices. Eram mesmo treinados para transportar bruacas pesadas e bruaqueiros folgados e pacientemente esperavam que seus donos fizessem bons negócios, dessem suas “voltinhas proibidas”, bebessem à vontade, não tinham hora certa para voltarem pra casa. E o dia inteiro era aquele movimento no Mercado.
Era comum vê-los voltando para casa, à tardinha, alguns montados e tocando cargueiros; outros bêbados procurando se equilibrar em cima do cavalo, tombando de um lugar para outro, conversando sozinho; outros a pé com alpercata de couro cru, chapéu desabado pelo tempo e pelas chuvas, cigarro de palha no canto da boca, tocando seu burrinho lerdo, as bruacas vazias, e os “cobrinhos” no bolso. Iam felizes da vida, já pensando na feira do próximo sábado pra tomar outra bebedeira.
Este espetáculo durou anos. A cidade cresceu e aos poucos foi se modificando. Estas lembranças simples ficam guardadas em nossos corações.
O Mercado anos depois foi demolido. A Praça Doutor Carlos perdeu seu companheiro. A cidade assistiu tristemente àquele espetáculo como se fosse o enterro de um amigo. E com isso a cidade vai se descaracterizando, perdendo o encanto natural. Os casarões e os sobrados que nos lembram HISTÓRIAS DO PASSADO estão desaparecendo...
O relógio antigo do Mercado Municipal está hoje silencioso na Catedral. Era ele que durante anos quebrava a monotonia daquela praça, com suas fortes e compassadas badaladas, cujo eco levava para longe, desaparecendo por trás dos montes.
Quantas vezes acordavam as crianças para a escola e os homens para o trabalho com seu badalar amigo e pontual?
Ele hoje deveria estar ainda funcionando para ver e sentir o progresso desta cidade, que viu engatinhando e dando os primeiros passos!
Agora só nos resta a saudade...
E a esperança de que a cidade acorde, grite e proteste contra a demolição dos monumentos do nosso passado.

(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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